terça-feira, 3 de janeiro de 2012

mit Liebe


mas ela nunca soube dizer

Faz tempo desde a última vez em que visitei estas minhas velhas memórias obscurecidas pelo caminhar do tempo, que me obriga a ser prática para sobreviver. Mas às vezes eu ainda retorno àquela história e a revejo com complacência, juntando o máximo de pedaços que eu consigo recordar, como se eu fosse a única capaz de escrever um livro sem fim. E às vezes também, as sombras me envolvem de um jeito diferente e as cores despertam em mim um reconhecimento inédito de certas coisas que ficaram por serem contadas.

Não era uma pessoa cujas nuances atraíssem minha atenção, não como Liesel. Porém, de fato, havia mais sob a superfície do eu me permiti observar, em minha ânsia por acompanhar a pequena ladra de livros.


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A primeira vez que ela tocara a menina, Rosa Hubermann não foi gentil. Nem nunca seria. Suas mãos eram ásperas e acostumadas a mudar o rumo das coisas para o que ela queria, independente de qualquer tendência natural. Ela deixou que a menina habitasse em sua casa, mas seu coração parecia uma rocha bruta demais para que Liesel pudesse se aproximar. Ela só a chamava por Saumensch, e Liesel aceitava porque não tinha escolha.

Conforme os anos passavam, Rosa transformou-se ainda mais numa criatura cor de cinzas, como se a rocha-Hubermann sofresse silenciosamente com a erosão. Para a Meminger, a severidade com que era tratada continuava igual, então isso era prova suficiente de que a Mama ainda era a mesma.

O que Liesel não podia notar (e cabe a mim, portanto, deixar registrado) é que a cor desbotada dos olhos de Rosa adquiriam um tom rosado quase imperceptível toda a vez que Liesel estava perto, e toda vez que ela ficava fora de casa por muito tempo. Mas Rosa nunca soube dizer, porque era um misto incompreensível de preocupação e carinho, severidade e orgulho, invasão e pertencimento. Todos os sentimentos que se embolavam juntos dentro dela, batendo-se contra a rocha sólida, e impediam que a voz saísse.

No final, o cadáver de Rosa estava quase igual à sua própria alma: tão translúcido, que não havia mais vestígios da fuligem que impregnara a sua pele a maior parte da vida. Pouco antes que eu a levasse, no último meio suspiro de bravura que Rosa Hubermann tomou, de os olhos fechados, seus lábios fracamente formaram algo: "Lie-". Por muito tempo, eu imaginei que ela quisesse dizer Liesel. Mas, agora, depois de repensar este cinza brando que a princípio não me dizia nada, eu sei o que ela tentou dizer.
Liebe
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(Dizem os humanos que uma vida de memórias toma conta de quem está prestes a morrer.
Tudo o que eu sei é que Rosa estava pensando na menina.)

"So I won't let you close enough to hurt me, no
I won't ask you to just desert me
I can't give you the heart you think you gave me
It's time to say goodbye to turning tables"


N/A: Liebe: amor. / mit Liebe: com amor; com carinho.
Turning tables, Adele.

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